Por Francisco Meton Marques de Lima*
Há uma regra, criada por lei em 1946 e incorporada à Constituição Federal de 1988, que obriga o servidor público federal a aposentar-se aos 70 anos. A “expulsória”, como é conhecida, aplica-se aos magistrados – juízes, desembargadores e ministros dos tribunais superiores – e aos membros do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União. Há uma década, a mudança dessa norma está em discussão no Congresso Nacional. São duas Propostas de Emenda Constitucional (PECs), cada qual com objetivos distintos. A PEC 457/2005 altera de 70 para 75 anos a idade para a aposentadoria compulsória. Já a PEC 21/2007 permite ao magistrado que esteja no exercício da Presidência de tribunal continuar em atividade até o fim do mandato, independentemente da idade.
O que nos propomos aqui é fazer uma rápida reflexão sobre o assunto a partir de uma questão muito simples: a mudança é boa ou ruim para a sociedade?
Para facilitar o raciocínio, fiquemos com a proposta para alteração de idade. Originária da PEC 42/2003, de autoria do senador Pedro Simon, a PEC 457 – apelidada de “PEC da Bengala” – foi enviada à Câmara dos Deputados em agosto de 2005, depois de aprovada no Senado. Após várias audiências públicas na Câmara, passou pelo crivo da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) e de uma Comissão Especial criada com a finalidade específica de analisá-la. Em dezembro de 2006, a proposta foi ao Plenário pela primeira vez.
A partir daí, esse ritual vem se repetindo, como uma peça teatral de longa temporada: a PEC é colocada na ordem do dia e a votação é cancelada, pelos mais variados motivos: falta de quorum, encerramento da sessão, apreciação de outra matéria e até falecimento de parlamentares. Os requerimentos se sucedem, sem sucesso. Somente em 2011, foram protocolados 18 – o que dá mais de um por mês. Em 2012, outros 10 pedidos foram oficializados. Neste ano, até a presente data, há dois requerimentos: o primeiro, de fevereiro, do deputado Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), e o segundo, de 13 de março, do deputado Bernardo Santana de Vasconcellos (PR-MG).
O que parece evidente é que o lobby ostensivo contra a votação da PEC 457 continua vitorioso. Desde 2003, quando foi apresentada a proposta original no Senado, dez anos se foram. E desde 2006, quando a proposta foi aprovada na CCJC e na Comissão Especial, lá se vão sete anos.
Onde estaria a polêmica?
Simples de entender são os argumentos dos que defendem a alteração de idade. Primeiro, pela questão da longevidade: quando o limite de 70 anos foi fixado, há meio século, a expectativa média de vida do brasileiro não chegava aos 50 anos – bem diferente da atual, que é superior a 72 anos. Nessa linha, seria exaustivo repetir aqui o que todos dizem sobre os avanços científicos que ampliam cada vez mais a longevidade do ser humano. Ademais, o limite para a “expulsória”, mesmo sendo alterado, não obriga ninguém a continuar trabalhando. Apenas dá chance àqueles que, tendo completado 70 anos e estejam em pleno vigor físico e intelectual, possam continuar na ativa. Por outro lado, qualquer profissional, no setor público ou no setor privado, uma vez incapacitado para o trabalho, é alcançado por mecanismos legais que impõem sua aposentadoria. Não importa a idade.
Outro argumento consistente é o da economia. Por que razão o erário deve ser onerado pelo simples fato de que o indivíduo completou 70 anos? Ao aposentá-lo e nomear outro para ocupar sua vaga, o Estado paga duas vezes. Estimativas amplamente divulgadas – e nunca contestadas com números – indicam que a alteração do limite de idade resultará em economia de R$ 20 bilhões. É pouco? Basta calcular a quantidade de escolas ou hospitais poderiam ser construídos com esse dinheiro.
Contra a PEC 457, manifestam-se as principais organizações de classe de magistrados e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Mera coincidência? Claro que não.
Nessa trincheira, argumenta-se que há necessidade de renovação no quadro de magistrados, para que os tribunais não se transformem em cortes muito conservadoras ou para que não se impeçam atualizações da jurisprudência nacional. Aduz-se que juiz bom é juiz jovem, que tem mais energia para enfrentar a montoeira de processos. O magistrado jovem, por ter mais disposição física, teria mais capacidade de produção do que os mais antigos. Outro argumento refere-se à “alternância do poder”: como os mandatos diretivos no Judiciário são renovados a cada dois anos e a escolha é feita por ordem de antiguidade, manter os mais antigos em atividade emperraria a ascensão dos mais novos. Para usar o jargão popular: a fila tem que andar.
Em resumo, segundo essas vozes, a manutenção da aposentadoria obrigatória aos 70 anos brindaria a sociedade brasileira com o que há de melhor no mundo da Justiça: maior agilidade no julgamento dos processos, ampla renovação do pensamento jurídico e até a saudável e democrática alternância de poder.
Será verdade?
A tão combatida lentidão no Judiciário brasileiro não teria como causa outros fatores, como por exemplo, o excesso de recursos? A renovação do pensamento jurídico tem mesmo relação direta e exclusiva com a idade dos juízes? Ser jovem significa necessariamente ser renovador, ter idéias arejadas e consistentes? Ao contrário, ter mais idade – 70 anos, por exemplo – significa mesmo “parar no tempo”, fechar-se à renovação?
Na verdade, quem é produtivo, o é por toda a vida – salvo caso fortuito ou por problemas de saúde. O preguiçoso vive na improdutividade e morre improdutivo. Da mesma forma, quem é conservador continua sem evoluir – e não há caso fortuito que resolva –, ao passo que quem é proativo nas ideias, não envelhece no pensamento.
Enfim, não faltam argumentos a favor da mudança da idade para a “expulsória”, mas não temos a pretensão de estender o assunto, mesmo porque essa é a seara dos especialistas. Queremos aqui apenas chamar a atenção para a visão simplista dos que vêem a questão pelo ângulo obtuso do corporativismo. Nossas representações classistas têm nobres missões a cumprir e grandes causas a defender – e, definitivamente, insistir na manutenção da aposentadoria obrigatória aos 70 não está entre elas.
Inúmeros magistrados iniciam e concluem brilhantes carreiras na jurisdição de primeiro e segundo graus, e muitos deles coroam suas trajetórias em tribunais superiores e no Supremo Tribunal Federal. São servidores públicos que prestam ou prestaram relevantes serviços à nação, mas são impedidos de continuar a fazê-lo no momento em que cometem o “crime” de completar 70 anos.
Alguns exemplos são bem ilustrativos.
No Supremo Tribunal Federal, aposentaram-se por idade, recentemente, os ministros Ayres Britto e Cezar Peluso – o primeiro após exercer a Presidência do STF e o segundo antes mesmo de completar o mandato. Também foram obrigados a se retirar da magistratura, pelo mesmo “crime” dos 70, os ministros Carlos Velloso e Néri da Silveira. Na Justiça do Trabalho – também para ficar apenas com os mais recentes – aposentaram-se os ministros Milton de Moura França, Rider Nogueira de Brito, Ronaldo José Lopes Leal, Almir Pazzianotto, Horácio Raymundo de Senna Pires, José Simpliciano e José Luciano de Castilho Pereira. Os quatro primeiros exerceram a Presidência do TST.
Todos esses senhores foram obrigados a deixar o serviço público no auge de sua experiência e no esplendor de seus conhecimentos. A partir daí, aconteceu o óbvio: eles continuaram em plena atividade. A maioria prosseguiu com suas trajetórias profissionais do “outro lado do balcão”, em escritórios de advocacia. Com a experiência e os conhecimentos acumulados – em grande parte, graças ao investimento público –, esses senhores vão bem, obrigado, colhendo os bons frutos de sua trajetória acadêmica e profissional.
Nada mais justo. Nada mais legítimo.
No Poder Legislativo, se a mesma regra de prevalecesse, parlamentares já deveriam estar aposentados. A começar pelo senador José Sarney, que completa 83 anos no próximo dia 24 de abril. Eleito em 1990 pelo PMDB do Amapá, ele se reelegeu em 1998 e em 2006. Ou seja: pela “expulsória”, Sarney teria sido obrigado a aposentar-se em 2000 – e não completaria sequer o segundo mandato, muito menos seria eleito e reeleito para a Presidência do Senado em 2003, 2009 e 2011.
Além de Sarney, outros 14 senadores da atual Legislatura também estariam aposentados ou em vias de se aposentar. São eles: Álvaro Dias (PSDB-PR), Antônio Carlos Valadares (PSB-SE), Eduardo Suplicy (PT-SP), Epitácio Cafeteira (PTB-MA), Francisco Dornelles (PP-RJ), Garibaldi Alves (PMDB-RN), Jarbas de Andrade Vasconcelos (PMDB-PE), João Alberto de Souza (PMDB-MA), João Durval Carneiro (PDT-BA), Luiz Henrique (PMDB-SC), Maria do Carmo do Nascimento Alves (DEM-SE), Roberto Requião (PMDB-PR), Ruben Figueró (PSDB-MS) e, fechando a lista: Pedro Simon (PMDB-RS), autor da proposta original que altera a idade para aposentadoria compulsória.
No Executivo, onde também não há limite de idade, vários ministros seriam atingidos pela “expulsória”. A conclusão é que só o Judiciário, o Ministério Público e o Tribunal de Contas sofrem com essa limitação.
O fato inexorável é que, qualquer que seja o limite, a idade chegará. Inclusive para os que, hoje, tem pressa em chegar à magistratura. Não há, portanto, como deixar de indagar: a aposentadoria obrigatória aos 70 anos configura crime, castigo ou mera estupidez?
*Francisco Meton Marques de Lima é presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 22ª Região (PI). Professor da Universidade Federal do Piauí, autor de vários livros, dentre os quais: Elementos de Direito do Trabalho e Processo Trabalhista (14ª edição, 2013); Manual de Processo do Trabalho (2ª edição, 2008) e Manual de Direito Constitucional, todos pela Editora LTr, de São Paulo.
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 16 de abril de 2013